Quando uma criança sofre violência sexual,algumas alterações de comportamento sinalizam que algo está errado.
Num dia comum de trabalho,fui informada de que na sala de espera havia um escrivão de polícia e uma policial que queriam falar comigo.Estranhei o fato e rapidamente fiz um balanço de minhas ações nos dias anteriores,revendo se eu havia descumprido alguma lei ou cometio algum delito que me fizesse ser "procurada pela polícia".Ao verificar que nada havia de extraordinário em meu comportamento,fui ver do que se tratava.
Ambos queria falar comigo em um lugar que não fosse a recepção da faculdade,onde costumo atender muitas pessoas durante o expediente.Encaminhei-me juntamente com eles para uma sala mais reservada e me dispus a ouvi-los.Apresentaram-se como policiais de uma delegacia próxima e vinham pedir ajuda para um caso muito delicado que havia chegado às mãos do delegado de plantão.
Uma jovem mãe havia procurado a delegacia para dar queixa de abuso sexual sofrido pela filha e o acusado era tio de segundo grau da menina.A criança tinha nove anos de idade e viera acompanhada da mãe e da avó materna.A queixa foi registrada,mas o delegado não se sentiu seguro para pautá-la com base no depoimento da garota,pois esta apresentava "algum problema",segundo a observação dele.Daí o encaminhamento do caso para a faculdade de psicologia do Centro Universitário de São Paulo,capital,que tem como responsabilidade social contribuir,no que for possível,com a comunidade local.
A menina,segundo o escrivão,era confusa no que falava,não completava as frases e desviava o olhar quando lhe perguntavam algo.Como acreditar nela?Como confiar em suas palavras para validar uma queixa tão grave?Como incriminar uma pessoa da própria família?
Garza & Michel (1994)afirmam que 85% dos perpetradores de crimes sexuais são parentes ou indivídos próximos da vítima.Abrapia (1997) diz que 57% dos casos são cometidos por pais biológicos,avôs,padrastos,vizinhos,irmãos e tios.
Esses dados são alarmantes,pois nos parece difícil imaginar que uma pessoa tão próxima seja capaz de um crime tão hediondo contra uma criança indefesa,mas a realidade é confirmada pelos fatos.Parentes e pessoas do convívio da criança são aquelas que têm mais acesso a elas geram pouca desconfiança dos adultos ou cuidadores.
Geralmente,o abuso ou a violência sexual contra a criança acontece dentro de casa.Estudos realizados em Portugal (Almeida,1999) dizem que é dentro de casa que os maus-tratos são mais frequentes e mais perigosos.No caso das crianças,a maioria dos crimes sexuais transcorre em ambiente privado,70,5% dos casos,principalmente na residência da vítima.OU ainda na casa de parentes próximos.
Segundo Drezett (2000),a maioria das vítimas encontrava-se em atividades cotidianas quando foram agredidas,isto é, as crianças estavam em casa e realizando atividades comuns como brinca,dormir,estudar ou simplesmente "estar em casa".Que incoerência:o lar,que deveria ser o lugar mais seguro para os pequenos,é, no entanto,o mais vulnerável!
A menina contara para a mãe o ocorrido,mas esta percebeu o comportamento alterado da criança,desconfiou que algo estava errado com a filha e foi investigar o que era.Depois de algumas perguntas,a menina acabou contando que "o tio a havia machucado e que era para ela calar a boca". O fato ocorrera duas noites antes,quando a menina dormia na casa da tia,juntamente com a avó.
Quando uma criança sofre violência sexual,algumas alterações de comportamento sinalizam que algo está errado.Comportamento sexualizado inapropriado,ansiedade,depressão,isolamento,queixas somáticas,problemas escolares,Transtornos de Estress Pós-Traumático,comportamento auto-lesivo (quando se machuca de propósito,se morde,arranca cabelos)e ideação suicida poderão ser verificados e causam grande impacto na criança (Williams, 2002).
Ao verificar alguns desses sintomas,as devidas providências foram tomadas por aquela mãe,que procurou imediatamente a polícia,mas havia ainda outro obstáculo:a criança tinha significativo retardo mental.A própria mãe disse ter ficado em duvida se acreditava na filha ou não,mas havia evidências claras da violência.A menina tinha escoriações e visíveis sinais de agressão sexual.
Seria possível não acreditar nela,mesmo tendo um comprometimento tão severo,o que deixou ainda mais indignado o delegado de polícia.Abusar de uma criança é covardia,e ainda pior se a criança for portadora de alguma deficiíncia,o que a torna mais vulnerável,indefesa e sem condições de reagir.
O agressor se vale disso,põe em conta a fragilidade da vítima,pois quem lhe dará crédito?Estatísticas norte-americanas revela que indivíduos portadores de deficiência mental são vítimas de abuso em maiores proporções do que as pessoas da população em geral (Strickler,2001).Deficientes com dificuldades mentais,comprotamentais ou multiplas foram alvo de maior exposição a diferentes tipos de violência,afirmam alguns estudos.Estima-se que 50% dos deficientes mentais foram sexualmente abusados ao menos uma vez na vida,diz Drezett (2000).
No dia seguinte,após o encontro com o escrivão e a policial,recebi a mãe e a criança.A menina era bem desenvolvida para seus nove anos de idade.Com certeza,havia entrado precocemente na puberdade e tinha aparência de uma "quase mocinha".Tinha o olhar perdido e,às vezes,o fixava em algo em minha sala.Uma gotinha de saliva insistia em "quase cair" de sua boca que ela não conseguia manter fechada;mal conseguia dizer seu nome e não sabia dizer quantos anos tinha.
A mãe disse que ela era normal até os outo meses de idade,quando começou a ter ataques epiléticos.As convulsões foram tão intensas e frequentes que acabaram por provocar lesões irreversíveis,afetando o desenvolvimento da criança.Ela se tornara dependente,não conseguia realizar sequer pequenas tarefas.Sua fala era comprometida e tinha dificuldades para desenvolver um raciocínio lógico.Como eu poderia extrair a verdade daquela criança,a ponto de validar sua história contra o tio agressor?
Durante dois encontros,brincamos de casinha,boneca e escolinha.No terceiro dia,ela desenhou uma árvore bem grande e,ao lada,uma pequenina flor.Ao perguntar-lhe se aquela árvore tinha medo de alguma coisa,ela fixou os olhos em mim,aproximou-se e cochichou no meu ouvido dizendo que a àrvore não tinha medo de nada mas..."a florzinha tinha muito medo do tio dela,pois ele a machucara quando dormia na casa da avó...' E contou detalhadamente toda a cena do abuso,com uma clareza indiscutível.
Cheguei a ficar emocionada com a inocência daquela criança e pensei na responsabilidade de pais e cuidadores de estarem atentos para prevenir e proteger crianças tão especiais.Ser criança e ainda ser deficiente mental aumenta muito a possibilidade de se tornar vítima.No Brasil,existem poucos estudos sobre a violência na área da deficiência mental,enquanto que em países como Canadá e Estados Unidos isso já acontece há décadas.
É necessria a união de esforços de pais,educadores,pesquisadores e da comunidade em geral para desenvolver programas de atenção e proteção a essa população de alto risco.Desse modo,muitas crianças poderão ter preservada a sua integridade física,moral e psicológica.
Um relatório foi enviado ao delegado,o agressor foi preso e a criança participou de um programa de apoio às vítimas de abuso sexual.
Tércia Barbalho é Psicóloga